menino

Parece mesmo feitiço. Ele, que sequer é dado a gentilezas – dessas, de parecer ser -, atrai para si bem querência tamanha, que mal nos damos conta de que vivemos a lhe antecipar vontades e gostos.

Cresceu correndo mundo com os pés descalços, em casas com chão de terra batida, levando comida pro pai que trabalhava na lavoura e ele mesmo tendo que trabalhar na roça. A aridez desse mundo, entretanto, nunca coube em suas histórias. Ele não faz caso das mãos calejadas, do dedo que perdeu em uma máquina, não trata da falta. Suas histórias, ao contrário, são repletas de.

Sinto o melado na boca, tanto que até arrepia, quando ele conta, com gosto, como faziam limonada e adoçavam escondido com o açúcar guardado a sete chaves pela mãe. O irmão menor ficava de tocaia, no quintal, com a incumbência de dar o sinal tão logo avistasse a mãe voltando da venda. Lambuzavam-se e a dor de barriga era certa.

O cigarro feito com palha e fumo, tão proibido quanto o açúcar, era até fácil de conseguir. O duro era acendê-lo. Tinham que esperar o pai distrair para que um deles fosse até o fogão à lenha, pegasse uma brasa acesa e atirasse pela janela para o outro que já esperava com o cigarro pronto.

Certa feita, certos de que estava na hora do menor aprender a nadar, resolveram jogá-lo no rio que cortava a fazenda. O Luisinho engoliu muita água, mas não teve opção – saiu nadando, pra passar muitos dos anos seguintes sem sequer chegar perto das margens de qualquer rio. Depois disso, mal tolerava bacias com água.

A escola ficava a oito quilômetros da casa. Ele ia e voltava à pé, com o amigo Zé Pernambuco. Quando dava sorte de os bichos estarem ali, à vontade, sem vigia, pegava umas galinhas do vizinho e vendia no caminho. Nesse dia não chegava na escola. Ia pro vilarejo gastar tudo o que arrecadara, em doces.

Andar sem sapatos não o incomodava. Eram maioria os descalços na escola e ele ainda se diverte contando como riam do garoto que usava sapatos.

O Zé Pernambuco, apesar de todo o esforço da professora, nunca aprendeu a ler. Com muito custo conseguiu, depois de alguns anos, assinar o nome, mas nunca passou disso. Ele, por sua vez, lia muito. Lia o que lhe caísse às mãos. Não cursou mais do que a quarta série, mas é daqueles que veio ao mundo para aprender. Quando instalaram o rádio na fazenda, passou a ocupar as noites ouvindo noticiário de rádios estrangeiras e ali começou a definir sua vontade política.

Quando a fazenda ficou pequena, veio o circo e tudo aquilo pareceu tão incrível que ele não vacilou em partir. Voltou tempos depois e seguiu, garoto, vida afora.

Ele não chegou a pedir que fossemos todos à praia. Nada disse. Fez parecer ideia nossa. Justo nós, tão cansados e velhos de tão cansados. Saímos da sua casa já tão tarde, não parecia adequado. De repente me distraio da direção e olho pra ele, ali sentadinho, no banco do passageiro (ele que sempre nos levou a todo e qualquer lugar, que preferia comprar brinquedos a  pagar contas, que usava o dinheiro da gasolina pra comprar pizza e ficava sem ter como ir pro trabalho no dia seguinte). Os olhos azuis brilhando de satisfação e olhando longe, tão longe que eu não consegui alcançar. O vidro aberto e aquele vento todo bagunçando o pouco cabelo que lhe resta. Ele segura a perna que dói com uma mão e com a outra leva à boca os doces todos que comprou quando paramos no posto. O menino ainda está ali, com olhos que sabem rir.

Eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira— só meu companheiro amigo desconhecido. Guimarães Rosa

 

check list

Saí da Pompéia, sábado de manhã (dia claro, sol quente), passei no Taboão pra pegar meus pais e fomos todos levar meu carro pra trocar as pastilhas de freio em uma oficina em Cubatão. Não adiantou dizer que era algo simples, que podia ser feito em qualquer lugar por aqui, que não compensava. Meu pai já tinha ligado pro amigo da oficina e combinado. Eu ainda tentei dizer que tinha consulta com um oftalmologista, mas ele disse que era besteira, que eu não tenho nada nos olhos e lá fomos. É a cara dele por sentença na vida da gente.

Oficina lotada e ele ali, meio tortinho, zanzando por entre os carros e peças e mecânicos. Faz questão de por a mão em tudo, de conversar, dar palpite. Dali a pouco nos chama pra comer em um boteco ali perto. Não entendo porque quer andar tão rápido – será que acha que abreviando o tempo de percurso engana a dor na perna? Feijoada. Não conheço o lugar e não tenho passado muito bem nos últimos dias, então vou com calma, como pouco e devagar enquanto ele, que já levou uma baita bronca da nutricionista do hospital (“nada de comer na rua…”), come três pratos em tempo recorde e sai dali feliz – isso sim é feijoada, por isso o bar (único em quilômetros) está cheio!

Outro dia fui trabalhar com ele. Passamos por duas oficinas na zona norte e de lá fomos pra Cubatão. Fiquei tão exausta quanto ele, embora eu tenha o dobro de pulmões funcionando.

– Fia, melhor a gente conversar com o médico, pedir pra ele fazer outra biópsia, porque se eu tivesse mesmo câncer no pulmão, estaria fodido.

Rimos um tanto. A primeira vez que falei com ele sobre seu diagnóstico (nunca sobre o prognóstico) foi muito difícil. Agora ainda dói um pouquinho quando o vejo tentando contornar, dar as costas , mas entendo que ele usa as armas que tem e enquanto vê alternativas, vamos vivendo todos.

Desde que soubemos algumas pessoas, mais ou menos próximas, se foram. Umas doentes, outras sãs, jovens. Nenhuma com os dias tão contados quanto os dele. Uma sensação de que tudo, em toda parte, pode estar por um fio.

Outro dia escrevi como se o fio estivesse já rompido. Não está. É só um fio, com a fragilidade que lhe é inerente, mas está ali ainda. Depois daquele tempo de tanta tristeza, em que eu estava certa de que ele morreria sem que nada mais lhe apetecesse, sem risadas, sem prazeres, meu pai não só voltou a comer, como já cozinhou pra família toda (inclusive o macarrão e a polenta). Engordou. Tem dirigido por aí atrás de clientes e fornecedores. Pegou mais trabalho. Foi cuidar da vida da minha irmã e me ajudou a deixar meu carro em ordem. Riu muito. Acostumamo-nos a vê-lo procurar um lugar  e se sentar, ofegante, depois de alguns passos. Ele é assim agora, cansa logo, respira mal e fica pouco tempo em pé, mas também é o outro que sabe como fazer bem um trabalho, que conta histórias , que ouve histórias, que dirige com a carteira suspensa, que não quer tomar remédios. Reli o outro texto e é como se esses dois meses fossem uma resposta, parece até um check list. Estou mais tranqüila, consigo até dar uma espiadinha na minha própria vida, mas agora que deu pra voltar a respirar, quero mais tempo disso tudo.

carta a meu pai

Meu pai querido, quem diria, essa vidinha nos pegou de jeito, ali na curva, como dizem. Você e eu nos parecemos muito, inclusive na falta de jeito pra lidar  com a passagem do tempo, suas marcas, limitações e agora,  tudo o que eu queria – e ouso crer que você também -, era mais tempo, mais tempo com você. Eu sinto tanto a sua falta. A luta por você é grande – hospital, médicos, enfermeiros, a tristeza, a tua tristeza nos consome. Tua dor que não conseguimos eliminar e o medo que temos de que ela piore e você sofra ainda mais. O teu medo – vejo teu medo pai, sei que está assustado. Você tem medo de morrer, de acabar, de não nos ter mais. Tem medo do nosso sofrimento. Tem medo de não conseguirmos nos virar sem você. Tem medo de que te esqueçamos. Tem medo de a enfermeira não encontrar tua veia e te furar e furar e furar. Tem medo de não conseguir respirar, de não conseguir andar mais, de nunca mais sentir gosto de algo. Eu quero muito que dê tempo de você comer algo bem gostoso, cheiroso, algo que te satisfaça, que tenha o gosto de antes. Quero o antes, meu pai. Além de toda a dor por você, há essa dor enorme de te ver indo, de te perder aos poucos. Que saudade da tua risada solta, de quando você jogava a cabeça pra trás, ria e batia a mão na mesa – “Ah, vá!”. Seus braços estão tão magrinhos, você está tão pequenino, abatido, fraco, tão cheio de ossos. Parece um prisioneiro num corpo que não condiz com a tua vontade, porque essa grita, se agarra a toda e qualquer esperança. Você não ouve o que os médicos dizem, o que os exames mostram. Você quer sarar. Você tenta levantar, ficar sentado, tomar sol. Tenta prestar atenção na conversa. Tenta sorrir. Você sorri, mas eu sei que é por nós. Risada mesmo parece coisa do passado. No passado também ficaram a macarronada, a costela, a polenta, a sopa de mandioca, que você fazia e comia com tanto gosto. Eu queria que você desse uma volta no meu carro pra dizer porque ele faz barulho quando eu freio. Queria saber se tenho que colocar óleo ou se tenho que fazer o tal rodízio de pneus. Queria poder dizer que você não deveria ter ido até Mongaguá levar a Andréa pela milésima vez. Você me ensinou a andar de bicicleta, a dirigir, a acreditar na esquerda, a não acreditar em Deus, a ajudar sempre que possível, a não dar valor ao dinheiro e um tanto mais de coisas, mas não me deu nem dica de como lidar com uma perda dessas. É claro que não seria pra sempre, pai, ninguém é eterno, eu sei, mas eu não quero, não desse jeito. Te vi no carro, sentadinho no banco do motorista. Ligou, engatou a primeira, mexeu o carro um tiquinho, deu ré, voltou. Ficou ali a tarde toda, uma tarde linda de sol. Lembra pai, de nós todos pulando sobre você na cama, escancarando a janela e pedindo que nos levasse pra praia?  Você ria, fazia suspense e lá íamos nós pra Peruíbe – saíamos de casa quase meio dia, pra voltarmos no mesmo dia, à tardinha. E brincávamos tanto. Você ficava conosco na água o tempo todo, gostava tanto de nadar. Você foi me buscar no hospital quando a Gabi nasceu e foi de novo quando o Yan chegou. Também estava lá quando a Gabi ficou internada e quando o Yan caiu da escada. Esse você de agora só consegue estar perto se eu te procurar. Não espero mais que você se materialize na minha frente. Você nesses novos tempos assiste novela, assiste até aqueles programas sensacionalistas sobre crimes. Você pediu pra mãe rezar, está tentando um credo qualquer né, pai. Tomara que você consiga, que encontre um que te sirva (e aí fala o meu egoísmo que não suporta a impotência diante do teu desconforto). Sabe, às vezes eu dou uma escapadinha e peço por um milagre e, por alguns instantes, finjo que pode dar certo e quase acredito.

“que seja doce”

Entrei e dei de cara com ele deitado no sofá, sem cobertor. Corado, acordado e disposto a falar.

– Tudo bem, pai?

– Tudo bem.

– Alguma novidade?

– Novidade, só uma – sua mãe e a Helena.

Sentei-me esperando o relato de alguma briga entre as duas, ou o desfile de malfeitos, mas não, ele me contou que fez sozinho todo o almoço, que caprichou muito, mas comeu e vomitou em seguida.

– Você fez o almoço, pai? Que coisa boa! Passou mal? Faz mal não, vamos arrumar algo pra você comer agora.

Pareceu que ele me esperava pra contar. Ele me espera o tempo todo. Espera pelo David também. A Andrea e a Helena já estão por lá. Ele nos quer por perto, todos, aliás, como sempre. A diferença está na ansiedade de agora, na urgência.

Todos ali, junto dele. Junto mesmo, pertinho, quase ocupando o mesmo espaço. Moramos parte da vida em casas bem pequeninas – um cômodo, dois, três. Essa é grande, dois quartos, um ocupado pela Helena, Andrea e prole e o outro pelos meus pais. Qualquer que fosse o tamanho do lugar, estaríamos  – crianças e incontáveis e variados bichos de estimação – sempre no cômodo, no canto em que ele estivesse. Melhor ainda se o canto em questão fosse a cozinha. Ele sempre gostou de ficar agachado, conversando, com o copo de café na mão. Sempre copo, não gosta e nem nunca fomos de ter xícaras naquela casa.

Não lhe dávamos tempo de chegar, aprumar-se. A roupa toda suja de graxa só seria trocada depois da janta (e ele chegava, invariavelmente, faminto) e de lhe colocarmos a par de  todo o mundo que cabia nos nossos dias. Ele ouvia ou fazia que, sempre. Hoje não creio mais ser possível ouvir sempre e nem vejo mal nisso. Comentava, ria. Ria muito, ria alto, com gosto. Reclamava também, do barulho, das brigas constantes entre irmãos. Nunca bateu, embora contasse sempre sobre os diferentes modos das crianças da época dele e dos castigos aplicados. Ele xingava muito, aos berros. Atirava coisas – a torneira que alagou tudo enquanto tentava consertá-la, o vídeo cassete que mastigou a fita, a bicicleta na qual ele tropeçou. Ríamos, nunca tivemos qualquer receio dele. Não havia medo, mas um pedido dele valia mais do que as muitas chineladas ou ameaças da minha mãe.

Descobri que não foi ele que fez o almoço. Ele esteve ali no sofá, deitadinho, por toda a manhã. Talvez tenha sonhado, talvez quisesse ter feito de novo aquele almoço pra quem chegasse. Ele tem sonhado que está trabalhando, dirigindo, fumando. E conta esses sonhos todos bastante animado e de repente engata um plano de ir amanhã até Cubatão trocar as mangueiras de uma máquina (uma empilhadeira?). Daí fecha o semblante e diz que não vai, que não vai mais a lugar algum.

– Eu não posso viver assim, fia. Se eu não posso nem subir mais em uma máquina, não sirvo pra nada.

Outro dia percebi que ele me esperava pra trocar a lâmpada do banheiro. Não pediu. Revirava gavetas onde obviamente não haveria lâmpada alguma, até que eu perguntei o que, afinal,  ele procurava.

– A lâmpada do banheiro queimou.

– Pronto, peguei a da varanda e vou trocar.

– Você não consegue, não sabe.

Troquei. Passei a vida contando com ele  pra trocar as lâmpadas, chuveiro, pneus, colocar cortinas, montar móveis, brinquedos, bicicleta, isso até outro dia, mas essa eu troquei. Talvez as coisas não devessem nunca deixar de ser.

– Pai, você já poderia mesmo se aposentar e não seria o único aposentado por aí. Pode descansar um pouco, fazer outras coisas.

– Descansar de que?  Ah, fia, eu preciso trabalhar. Tem tanta coisa que eu poderia fazer. E eu não quero ninguém me levando pra lugar nenhum, eu sempre me virei, nunca dependi de ninguém…

– …

Fia, a gente podia pegar aquela caminhonete na Barra Funda e levar pra Guarulhos amanhã, hein! É bom eu ir até lá pra ver se está tudo certo.

– Guarulhos é perto da minha casa. Não é o caso de você verificar se está tudo ok por telefone mesmo?

– Não. Melhor você passar aqui cedo pra irmos juntos.

– Perfeito, pai. Melhor você ir até lá dar uma olhada mesmo. Se você estiver bem, né. De qualquer forma, passo aqui e a gente decide, tá.

E eu continuo ali, olhando pra ele. Ele sorri e dorme mais um pouquinho. E acorda e olha e me vê olhando e sorri. Só quando entro no carro minha dor pode estourar. E estoura, arrebenta, arrasa.

nos poços – caio fernando abreu

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do  poço do poço você vai descobrir quê.

faz de conta

Um tanto de coisas, de uma vida toda, foi embora. Na verdade não foi ainda, é estranho, as coisas aqui, ali, em toda parte, numa coreografia desordenada, deixando de existir, sem pressa. Era concreto, estava ali, mas não era de verdade. Adoro essa expressão – de verdade. Quando criança as coisas podiam ser de verdade ou de mentira e a perspectiva, a capacidade de relativizar, viriam apenas com os anos. Agora os anos todos não dão conta de relativizar, de tornar de alguma forma verdadeiras essas coisas todas a que me referi no início e que hoje estão indo embora. Se não verdadeiras, foram reais, chegaram mesmo a existir? Afinal, quem fui eu nessa história toda que nem era a minha? Desculpa, eu não percebi, não enxerguei nas entrelinhas, acostumada que estou a dizer sem meandros, beirando a grosseria até. É curioso pra mim a perplexidade que a minha perplexidade causa. Pasmem, eu não havia entendido mesmo. Acreditei uma, duas, dez, todas as vezes. Não cabia dúvida nessa minha fé cega e burra. Cada história recontada deixa um buraco naquela história que não é mais. Versões e versões e versões, em prosa e verso e gestos e pedidos de perdão já sem cor. Tivesse enxergado as contradições, tropeços, incoerências desse enredo torto, teria uma história pra contar. Não, essa eu não conto mais, não agora, não ainda. Queria outra e outra não há. Não acredito mais e essa é a maior perda. Depois de um roubo passei a fechar os vidros do carro e dirigir ficou muito pior. Ter a casa invadida me apresentou cadeados, trincos e trancas e um mundo todo através de insuficientes frestas. Não consigo mais crer deliberadamente e isso não adveio de uma escolha. Mas não faz mal, a janela está aberta, quase escancarada, agora.

mais caio fernando abreu

OS DRAGÕES NÃO CONHECEM O PARAÍSO

Caio Fernando Abreu

 

Tenho um dragão que mora comigo.

Não, isso não é verdade.

Não tenho nenhum dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém. Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço – seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei, sozinho neste apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia, numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes (a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma que precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo.

Isso me pareceu gradiloqüente e sábio como uma idéia que não fosse minha, tão estúpidos costumam ser meus pensamentos. E tomei nota rapidamente no guardanapo do bar onde estava. Escrevi também mais alguma coisa que ficou manchada pelo café. Até hoje não consigo decifrá-la. Ou tenho medo da minha – felizmente indecifrável – lucidez daquele dia.

Estou me confundindo, estou me dispersando.

O guardanapo, a frase, a mancha, o medo – isso deve vir mais tarde. Todas essas coisas de que falo agora – as particularidades dos dragões, a banalidade das pessoas como eu -, só descobri depois. Aos poucos, na ausência dele, enquanto tentava compreendê-lo. Cada vez menos para que minha compreensão fosse sedutora, e cada vez mais para que essa compreensão ajudasse a mim mesmo a. Não sei dizer. Quando penso desse jeito, enumero proposições como: a ser uma pessoa menos banal, a ser mais forte, mais seguro, mais sereno, mais feliz, a navegar com um mínimo de dor. Essas coisas todas que decidimos fazer ou nos tornar quando algo que supúnhamos grande acaba, e não há nada a ser feito a não ser continuar vivendo.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.

Ninguém perguntará coisa alguma, penso. Depois continuo a contar para mim mesmo, como se fosse ao mesmo tempo o velho que conta e a criança que escuta, sentado no colo de mim. Foi essa a imagem que me veio hoje pela manhã quando, ao abrir a janela, decidi que não suportaria passar mais um dia sem contar esta história de dragões. Consegui evitá-la até o meio da tarde. Dói, um pouco. Não mais uma ferida recente, apenas um pequeno espinho de rosa, coisa assim, que você tenta arrancar da palma da mão com a ponta de uma agulha. Mas, se você não consegue extirpá-lo, o pequeno espinho pode deixar de ser uma pequena dor para se transformar numa grande chaga.

Assim, agora, estou aqui. Ponta fina de agulha equilibrada entre os dedos da mão direita, pairando sobre a palma aberta da mão esquerda. Algumas anotações em volta, tomadas há muito tempo, o guardanapo de papel do bar, com aquelas palavras sábias que não parecem minhas e aquelas outras, manchadas, que não consigo ou não quero ou finjo não poder decifrar.

Ainda não comecei.

Queria tanto saber dizer Era uma vez. Ainda não consigo.

Mas preciso começar de alguma forma. E esta, enfim, sem começar propriamente, assim confuso, disperso, monocórdio, me parece um jeito tão bom ou mau quanto qualquer outro de começar uma história. Principalmente se for uma história de dragões.

Gosto de dizer tenho um dragão que mora comigo, embora não seja verdade. Como eu dizia, um dragão jamais pertence a, nem mora com alguém. Seja uma pessoa banal igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa. Apenas, eles não dividem seus hábitos.

Ninguém é capaz de compreender um dragão. Eles jamais revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, já que o dia e a noite deles acontecem para dentro, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se tivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Hoje, pondero: talvez seja essa a sua maneira desajeitada de dizer, como costumo dizer agora, ao despertar – que seja doce.

Mas no tempo em que vivia comigo, eu tentava – digamos – adaptá-lo às circunstâncias. Dizia por favor, tente compreender, querido, os vizinho banais do andar de baixo já reclamaram da sua cauda batendo no chão ontem às quatro da madrugada. O bebê acordou, disseram, não deixou ninguém mais dormir. Além disso, quando você desperta na sala, as plantas ficam todas queimadas pelo seu fogo. E, quanto você desperta no quarto, aquela pilha de livros vira cinzas na minha cabeceira.

Ele não prometia corrigir-se. E eu sei muito bem como tudo isso parece ridículo. Um dragão nunca acha que está errado. Na verdade, jamais está. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões. Na manhã, na tarde ou na noite seguintes, quanto ele despertasse outra vez, novamente os vizinhos reclamariam e as prímulas amarelas e as begônias roxas e verdes, e Kafka, Salinger, Pessoa, Clarice e Borges a cada dia ficariam mais esturricados. Até que, naquele apartamento, restássemos eu e ele entre as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana. O que não podemos compreender, ou pelo menos aceitar.

Além de tudo: eu não o via. Os dragões são invisíveis, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar – você ainda tem paciência? Certo, muito lógico você querer saber como, afinal, eu tinha tanta certeza da existência dele, se afirmo que não o via. Caso você dissesse isso, ele riria. Se, como os homens e as hienas, os dragões tivessem o dom ambíguo do riso. Você o acharia talvez irônico, mas ele estaria impassível quanto perguntasse assim: mas então você só acredita naquilo que vê? Se você dissesse sim, ele falaria em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez em fadas também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria, com aquele ar levemente pedante: “Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível”.

Ele gostava tanto dessas palavras que começam com in – invisível, inviolável, incompreensível -, que querem dizer o contrário do que deveriam. Ele próprio era inteiro o oposto do que deveria ser. A tal ponto que, quando o percebia intratável, para usar uma palavra que ele gostaria, suspeitava-o ao contrário: molhado de carinho. Pensava às vezes em tratá-lo dessa forma, pelo avesso, para que fôssemos mais felizes juntos. Nunca me atrevi. E, agora que se foi, é tarde demais para tentar requintadas harmonias.

Ele cheirava a hortelã e alecrim. Eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos. Havia outros sinais, outros augúrios. Mas quero me deter um pouco nestes, nos cheiros, antes de continuar. Não acredite se alguém, mesmo alguém que não tenha um mundo pequeno, disser que os dragões cheiram a cavalos depois de uma corrida, ou a cachorros das ruas depois da chuva. A quartos fechados, mofo, frutas podres, peixe morto e maresia – nunca foi esse o cheiro dos dragões.

A hortelã e alecrim, eles cheiram. Quando chegava, o apartamento inteiro ficava impregnado desse perfume. Até os vizinhos, aqueles do andar de baixo, perguntavam se eu andava usando incenso ou defumação. Bem, a mulher perguntava. Ela tinha uns olhos azuis inocentes. O marido não dizia nada, sequer me cumprimentava. Acho que pensava que era uma dessas ervas de índio que as pessoas costumam fumar quando moram em apartamentos, ouvindo música muito alto. A mulher dizia que o bebê dormia melhor quando esse cheiro começava a descer pelas escadas, mais forte de tardezinha, e que o bebê sorria, parecendo sonhar. Sem dizer nada, eu sabia que o bebê sonhava com dragões, unicórnios ou salamandras, esse era um jeito do seu mundo ir-se tornando aos poucos mais largo. Mas os bebês costumam esquecer dessas coisas quanto deixam de ser bebês, embora possuam a estranha facilidade de ver dragões – coisa que só os mundos muito largos conseguem.

Eu aprendi o jeito de perceber quando o dragão estava a meu lado. Certa vez, descemos juntos pelo elevador com aquela mulher de olhos-azuis-inocentes e seu bebê, que também tinha olhos-azuis-inocentes. O bebê olhou o tempo todo para onde estava o dragão. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar a meu lado ficou leve, de uma coloração vagamente púrpura. Sinal que ele estava feliz. Ele, o dragão, e também o bebê, e eu, e a mulher, e a japonesa que subiu no sexto andar, e um rapaz de barba no terceiro. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde que lembro de abril – esse é o mês dos dragões – dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões, mas só às vezes, sabem transmitir.

Por situações como essa, eu o amava. E o amo ainda, quem sabe mesmo agora, quem sabe mesmo sem saber direito o significado exato dessa palavra seca – amor. Se não o tempo todo, pelo menos quanto lembro de momentos assim. Infelizmente, raros. A aspereza e avesso parecem ser mais constantes na natureza dos dragões do que a leveza e o direito. Mas queria falar de antes do cheiro. Havia outros sinais, já disse. Vagos, todos eles.

Nos dias que antecediam a sua chegada, eu acordava no meio da noite, o coração disparado. As palmas das mãos suavam frio. Sem saber porque, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começava a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado e à feira para encher o apartamento de rosas e palmas e morangos daqueles bem gordos e cachos de uvas reluzentes e berinjelas luzidias (os dragões, descobri depois, adoram contemplar berinjelas) que eu mesmo não conseguia comer. Arrumava em pratos, pelos cantos, com flores e velas e fitas, para que os espaços ficassem mais bonito.

Como uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comer. Sentava na sala toda arrumada, tapete escovado, cortinas lavadas, cestas de frutas, vasos de flores – acendia um cigarro e ficava mastigando com os olhos a beleza das coisas limpas, ordenadas, sem conseguir comer nada com a boca, faminto de ver. À medida que a casa ficava mais bonita, eu me tornava cada vez mais feio, mais magro, olheiras fundas, faces encovadas. Porque não conseguia dormir nem comer, à espera dele. Agora, agora vou ser feliz, pensava o tempo todo numa certeza histérica. Até que aquele cheiro de alecrim, de hortelã, começasse a ficar mais forte, para então, um dia, escorregar que nem brisa por baixo da porta e se instalar devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama. Ele tinha chegado.

Esses ritmos, só descobri aos poucos. Mesmo o cheiro de hortelã e alecrim, descobri que era exatamente esse quando encontrei certas ervas numa barraca de feira. Meu coração disparou, imaginei que ele estivesse por perto. Fui seguindo o cheiro, até me curvar sobre o tabuleiro para perceber: eram dois maços verdes, a hortelã de folhinhas miúdas, o alecrim de hastes compridas com folhas que pareciam espinhos, mas não feriam. Pergunte o nome, o homem disse, eu não esqueci. Por pura vertigem, nos dias seguintes repetia quanto sentia saudade: alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim hortelã alecrim.

Antes, antes ainda, o pressentimento de sua visita trazia unicamente ansiedade, taquicardias, aflição, unhas roídas. Não era bom. Eu não conseguia trabalhar, ira ao cinema, ler ou afundar em qualquer outra dessas ocupações banais que as pessoas como eu têm quando vivem. Só conseguia pensar em coisas bonitas para a casa, e em ficar bonito eu mesmo para encontrá-lo. A ansiedade era tanta que eu enfeiava, à medida que os dias passavam. E, quando ele enfim chegava, eu nunca tinha estado tão feio. Os dragões não perdoam a feiúra. Menos ainda a daqueles que honram com sua rara visita.

Depois que ele vinha, o bonito da casa contrastando com o feio do meu corpo, tudo aos poucos começava a desabar. Feito dor, não alegria. Agora agora agora vou ser feliz, eu repetia: agora agora agora. E forçava os olhos pelos cantos de prata esverdeadas, luz fugidia, a ponta em seta de sua cauda pela fresta de alguma porta ou fumaça de suas narinas, sempre mau, e a fumaça, negra. Naqueles dias, enlouquecia cada vez mais, querendo agora já urgente ser feliz. Percebendo minha ânsia, ele tornava-se cada vez mais remoto. Ausentava-se, retirava-se, fingia partir. Rarefazia seu cheiro de ervas até que não passasse de uma suspeita verde no ar. Eu respirava mais fundo, perdia o fôlego no esforço de percebê-lo, dias após dia, enquanto flores e frutas apodreciam nos vasos, nos cestos, nos cantos. Aquelas mosquinhas negras miúdas esvoaçavam em volta delas, agourentas.

Tudo apodrecia mais e mais, sem que eu percebesse, doído do impossível que era tê-lo. Atento somente à minha dor, que apodrecia também, cheirava mal. Então algum dos vizinhos batia à porta para saber se eu tinha morrido e sim, eu queria dizer, estou apodrecendo lentamente, cheirando mal como as pessoas banais ou não cheiram quando morrem, à espera de uma felicidade que não chega nunca. Ele não compreenderia. Eu não compreendia, naqueles dias – você compreende?

Os dragões, já disse, não suportam a feiúra. Ele partia quando aquele cheiro de frutas e flores e, pior que tudo, de emoções apodrecidas tornava-se insuportável. Igual e confundido ao cheiro da minha felicidade que, desta e mais uma vez, ele não trouxera. Dormindo ou acordado, eu recebia sua partida como um súbito soco no peito. Então olhava para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim – hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios que fossem. Nunca os via. Nunca via nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar, e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pântano de antes, cheio de possibilidades – que não aconteciam, mas que importa? – a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.

Hoje, acho que sei. Um dragão vem e parte para que seu mundo cresça? Pergunto – porque não estou certo – coisas talvez um tanto primárias, como: um dragão vem e parte para que você aprenda a dor de não tê-lo, depois de ter alimentado a ilusão de possuí-lo? E para, quem sabe, que os humanos aprendam a forma de retê-lo, se ele um dia voltar?

Não, não é assim. Isso não é verdade.

Os dragões não permanecem. Os dragões são apenas a anunciação de si próprios. Eles se ensaiam eternamente, jamais estréiam. As cortinas não chegam a se abrir para que entrem em cena. Eles se esboçam e se esfumam no ar, não se definem. O aplauso seria insuportável para eles: a confirmação de que sua inadequação é compreendida e aceita e admirada, e portanto – pelo avesso igual ao direito – incompreendida, rejeitada, desprezada. Os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas banais, inventamos – como eu inventava uma beleza de artifícios para esperá-lo e prendê-lo para sempre junto a mim. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.

Quando volto apensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas douradas, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum. Essa é sua natureza mais sutil, avessa às prisões paradisíacas que idiotamente eu preparava com armadilhas de flores e frutas e fitas, quando ele vinha. Paraísos artificiais que apodreciam aos poucos, paraíso de eu mesmo – tão banal e sedento – a tolerar todas as suas extravagâncias, o que devia lhe soar ridículo, patético e mesquinho. Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz.

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir.

Resta esta história que conto, você ainda está me ouvindo? Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe.

Nada, nada disso existe.

Então quase vomito e choro e sangro quando penso assim. Mas respiro fundo, esfrego as palmas das mãos, gero energia em mim. Para manter-me vivo, saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos esverdeados de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, tornar-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo. E, desse jeito, começar uma nova história que, desta vez sim, seria totalmente verdadeira, mesmo sendo completamente mentira. Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo:

– Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.

Não, isso também não é verdade.

 

meu namorado

Passei dias tranquilos, sem saudades, na verdade, sem emoção qualquer. A mudança de situação era esperada, desejada até. Situação precária, embora você pretendesse permanente. O fato de não entender ou não enxergar não muda os fatos. Tudo dito e redito, revisado tantas vezes e tantas mais burlado. Folhetim. Brigas teatrais, reconciliações certas. Vidas compartilhadas há tanto tempo que desaprenderam a ser sem esse nó, sem esse outro ali a ver, ouvir, contar, trocar, por vezes  a existir por ambos. Expectativas, acertos, desacertos.

Sem expectativas hoje, mas não é certo que dure. Sei que basta uma tentativa de seguir do outro, para aflorar o instinto de preservar, de agarrar, manter, sem pensar no que se perderia afinal. E nenhum dos dois consegue ainda pensar em seguir.

 

No início achamos que não há obstáculo grande o suficiente, mas há sim. Não exatamente um obstáculo – tanto que se foram mais de dez anos, mas um incômodo constante, crônico, com métodos e ardis embora óbvios, capazes de desgastar o que tínhamos por certo.

Essa, hum…, bagagem,  fez do cercar a nossa vida a sua própria , talvez sem se dar conta, não posso dizer. Sempre ali à espreita, e tanto que foi enfim presenteada, se é que se pode encarar assim um quartinho ali mesmo na Augusta, depois de outra frustração, bebedeira e afins. Mais dela e do quanto lhe rendeu a ocasião, não posso dizer. Quem sabe alguma terapia lhe devolva vida pra além disso.

Fato é que esse evento me fez ver e ouvir diferente, como os outros todos e aí, como eles, deixei de acreditar. Sem mais. Que importa se não importou, medo, ressaca, raiva. Não meus. Não espero mais do que dou. E nunca houve qualquer jura, qualquer combinado, compromisso ou algo assim. “Então, pra que chorar?”.

 

Teu sonho, fuga, não sei,  não tive como contê-lo, não consigo e abomino ainda a idéia de conter alguém. Essas dificuldades todas agora  diminuem de tamanho quando estamos juntos e tenho medo de pensar que, talvez, sejam elas nosso motivo .

 

Sei o que te dói, teus caminhos, tuas soluções e sei que sabes de mim quase tanto quanto eu. Isso fica. Laços tantos que não há como desfazê-los. Somos  se não um do outro, um para o outro, embora nem eu tenha certeza do que isso signifique.

Tanta coisa gostosa. Esse frio pede o abraço, o enlace. As viagens. Filmes e conversas. Livros, textos e mais conversas. Músicas, shows. A louça lavada. O café. “Vamos fumar?”. O menino, o cachorro, o medo da  gatinha. As séries de TV, os DVDs. Sinto falta sim, mas, estranhamente, não dói, parece longe. Prefiro que doa. Gosto de sentimento, paixão.

Ainda estou aqui, para o nosso aniversário de 13 anos, como você bem lembrou, meu caro. Não tenhamos pressa, que agora é tempo de esperar, de aquietar e esperar.

 

gabi

Gosto de brincadeiras com palavras, figuras de linguagem, frases ambíguas. Não assisti o filme, mas fiquei muito tempo pensando no título Cada um é para o que nasce. É para o que nasce. Nasce para ser. Continuo sem saber direito a que vim, se é que virei a estar certa disso antes disso ter fim. Mês passado atingi a maioridade no papel de mãe – mãe que pariu, porque mãe que cuida já sou de data mais remota ainda, de pais e irmãos –, 18 anos. Senti-me um pouquinho mais leve, como se soltasse algo. Espera-se algo dos dezoito anos, escolha de carreira, faculdade, bebida, cigarros, baladas sem o RG falso, dirigir. Aos dezoito de mãe certifico-me, agora com o aval dessa nova adulta que surgiu por aqui, que escolhi a faculdade errada, que não tenho carreira e nem sei por que caminhos dirigir. Não sei voltar também. Escolher agora é difícil, é lento, como empurrar algo ladeira acima sem qualquer ferramenta para burlar a correnteza, é ter que dar conta do atrito. Falta a disposição, a crença dos dezoito.
Eu lutava contra o sono em uma aula de História do Brasil, à tarde, com a professora Esmeralda, quando o Jeferson me chamou à porta. Joguei tudo na bolsa e saí. Positivo. Fiquei brava, perplexa, confusa. Não cabia na minha rotina de trabalho e duas faculdades. Uma noite bastou para aceitar a idéia, embora a luta ea dúvida tenham se mostrado presentes durante boa parte da gravidez.
Encarar ônibus lotado com uma barriga gigante, curso chato, alunos do fundamental II, não foi nada perto do que seria ter de lidar com um bebê. O bebê veio sem manual de instruções e não dava para desligá-lo. Já chegou com imposições – queria mamar, ser trocado, ninado e, no pouquíssimo tempo em que dormia, eu tinha que aproveitar para cuidar da sua roupa, da casa e do resto. Chorava , babava, vomitava. Eu passei a cochilar, a comer sopinha com o bebê, a assistir Castelo Rátimbum, Doug e as vinhetas da Ritinha. Passei a curtir aquela coisinha babona, a babar com os seus pequenos e constantes avanços. Estava ali, num sábado de sol, quando ela soltou a mão do berço e veio andando em minha direção. Primeiro parque de diversões, teatro, cinema, show. Lia histórias todas as noites, para ela e para a boneca “Natália”. Fui a quase todas as reuniões da escola – uma escola muito diferente das que frequentei na minha infância – ansiosa, como se ali pudesse também aprender um pouquinho mais do ofício de mãe. A primeira palavra que ela leu foi batata, quando fazíamos compras em um sacolão. Aos poucos a leitura tornou-se um hábito solitário e eu mal sabia dos livros que passavam por suas mãos. Andando por aí ela me disse que seria escritora. Cabeleireira, veterinária, professora, economista e jornalista também já foram profissões listadas. Perdi o medo de dirigir com ela e o irmão ao meu lado, por aí, um tanto por eles. Houve um período em que seu sonho era “morar em uma casa sem uma mãe alérgica para poder usar muito perfume”, roupas extravagantes como a tia Helena usava, maquiagem, esmaltes. Hoje encontro os meus CDs, tão criticados, no seu quarto, as músicas que eu curto, no seu Ipod. Minhas roupas “horrendas” não me servem mais e estão agora no guarda roupa dela, mesmo corpo, mesmo rosto, mesma arrogância.
O mesmo choque que tive quando soube da gravidez, tive há alguns anos, quando realmente me dei conta de que havia dado origem a OUTRA pessoa. Sim, outra pessoa, distinta, embora guardasse semelhanças, com sentimentos, vontades, idéias próprias. Outra pessoa para o mundo, alguém que deixaria de ser meu e passaria a cumprir seu próprio papel. Alguém que não concorda comigo, que me critica, que reage a mim de forma inesperada, ou melhor, quase como eu me lembro de ter reagido à minha mãe!
Agora eu torço pelo bem estar dessa menina e sua vontade, por vezes, vem antes da minha. Envelheço vendo-a crescer. Sei um pouco do caminho que ela está a trilhar, mas sei também que ela não pararia agora para me ouvir. Assisto, aplaudo, recrimino, tento me intrometer nessa vida tão nova e tão dela, feliz por ela conseguir desvencilhar seu caminho do meu. Acho que a vida é isso. Enquanto isso a minha segue, sem rumo definido.