Galindo retirou do bolso seus últimos trocados. O tempo passou rápido para quem desejara a eternidade numa madrugada de recordações doces, tão fundas na memória. Dinheiro suficiente para a corrida de táxi, respiração serena e tranquila, olhar de ave de rapina, a avenida vazia na madrugada. Estendeu o braço direito para as luzes que se aproximavam. O automóvel parou. Entrou apressadamente. Disse um olá contido, cansado, ao motorista. A segunda-feira clareava. Chuva fina que caía. Os cabelos suavemente molhados. Galindo sonhava a caminho de casa. Eram cinco e meia. Enquanto atravessava bairros residenciais entre o centro e seu destino, Roberto Galindo dormia sem culpa. Clarissa. Madeixas ruivas, ondulações oníricas. Os lábios dançarinos. Boca a dizer amor. Reencontro.
deliquescida
O grego Koteas
Koteas era um cara simples. Esquecia-se, invariavelmente, dos chinelos em qualquer canto da embarcação. Entrava no barco escondendo-se rapidamente em sua cabine. Retirava do frigobar o uísque gelado, mania antiga, e bebericava sem interrogar o amanhã. Sujeito de muitos amigos, muitos cacoetes, poucas mulheres e aborrecimentos menores. O mar era para Koteas algo maior. Para todos, assim parece ser. Mas para Koteas era maior, porém simples. Difícil de explicar. Koteas ainda descasca batatas no convés, uma antiga punição dos tempos de marinheiro. Habituou-se, ainda jovem, a insubordinar-se. Lembrança dos tempos da ditadura. Fugiu, porém, manteve certas tradições. Descascar batatas deixou de ser castigo para tornar-se terapia.
RELATO SOBRE OBJETO ENCONTRADO DURANTE VIAGEM AO QUADRANTE 6 QUANDO AGUARDAVA CONTATO NO PÓRTICO DE ACESSO AO HANGAR 9
Estranho à primeira vista
Enigmático porque desconhecido
Curioso quando revelou-se o real uso
Cilíndrico na forma
Perturbador quando tornou-se meu
Escuro e metálico
Metálico e escuro
Duro
Duro
Duro
Porém
Útil
*****
o menino que fui
ele não é
e nunca
e há tantos meninos
brincando entre escombros
de um mundo tão estranho
e ainda sou aquele menino
cabeça baixa
e olhos fechados
sonhando.
sabemos que há meninos
protegidos
em castelos
divertindo-se
com paisagens
automáticas
projeções de irrealidade
mas há o menino morando comigo
que começou quando eu quis
e compartilhamos a mesma
luta
porém
agora
ele corre
alheio às minhas opiniões
de pai.
*****
CABALLITOS DESBOCADOS DE HOCICO CONTRA EL MURO
y ahí vamos de nuevo al juego giratorio de los caballos para salir volando
lesionados de silencios incómodos y besos remendados que me saben
a reproches añejados o brillantes bengalas de auxilio sáquenme
de esta sala mientras le cambias al televisor brilla
carcajeándose de nosotros el conductor del programa muestra su
dentadura sonriente cuando en vez debiera abrirnos de par en par
sus sentimientos redonditos con los pantalones abajo y declamarnos comerciales
de productos que de tan milagrosos copulativos de nuevo tú
desabotonándome la camisa y te trepas a caballito arre arre caballito
que nos llevará directo al choque al muro del te acuerdas pero no
me acuerdo cómo llegar a las plantas
de tus pies separadas en mis manos y tus ganas de acelerar
la tarde hasta que termine y me tenga que ir o el programa finalice con
un enorme aplauso de parte de todos los televidentes llenos atascados
de una felicidad idéntica a quítame la camisa que quiero revolcarme
en tu arre arre acelera acelera para salir
volando como una parvada de aplausos lesionados de no vamos
a lograr esa dicha de nuevo pero
momentáneamente nuestros silencios en la sala más coloridos
que estar solos frente a internet buscando un pedazo de carne o
agujerito con nombre de telenovela como Pedro
Francisco Javier Alonso Fernando Santiago Gómez de la Garza
y Garza contoneándose cervatillo indeciso de quitarse la ropa o
decirnos ojos grandes siento algo especial por ti no tengo casa quiero
mudarme contigo o si no
retomar eso de los amigos y sus constantes ay ey uy ay y
sus chismes bobos de tan locales tan secos tan sin ti sin sexo sin tu vente aquí
aquí te quiero carne para mi solito pero ya no sabemos cómo
regresar a ese justo pantone de anaranjado de mi sofá o
tu cama apenas cruzábamos la puerta de donde ahora mismo sembramos
ecológicos arbolitos de silencios entrecortados por los gritos
de los concursantes del programa de televisión que quieren sueñan
ganarse un viaje a la playa o un auto o un refri o
una tostadora o lo que sea pero no regresar
a la casa con las manos con de nada
Sergio Loo
PEREGRINOS
Não há minuto
sem pensamento,
Nem caminho
Sem resposta.
Menos dinheiro
que apazigue
todas as guerras.
Todos sonham.
Desconhecem, porém,
as origens de suas ilusões;
a carne envelhece
sem que saibam.
Haverá sábio
que possa explicar?
As coisas findam.
Ideias se inventam,
tornam-se eternas
como erros
transformados:
acertos.
Aceitos consensualmente;
tradições que se cumprem
religiosamente.
Maomé subiu a montanha.
Abraão não sacrificou Isaac.
Jesus anunciou a boa-nova.
Buda meditou.
José trabalhava dezesseis horas por dia.
Não recebia hora extra. Tinha um banco de horas. Folga?
Sabe-se lá, quando…
Na última sexta-feira, o ônibus não passou no horário previsto.
Chegou atrasado.
Foi demitido.
A empresa alegou redução de custos com diminuição do quadro de empregados.
No dia seguinte, o patrão comprou um helicóptero e uma casa em Angra.
José não pagou o aluguel da casa onde morava.
Meses depois, o despejo.
Juntou coisas, mulher e filhos.
Peregrinou para a casa dos sogros.
GRANDES NAVEGAÇÕES
choravas a partida
da nau
em condições de tempo
desfavorável
situação
inominável
golpes no ar
irremediável decisão
seguir e não voltar
imensurável a revolta
da tripulação
tão distantes do velho mundo
todos os estandartes
rasgados
gritos e estardalhaços
amotinados
todos os medos
e pavores presos
ao pensamento
mastros estraçalhados
emborcada a embarcação
corações sem lastro
ventos arredios
o mar em tempestades
agitado
cuspindo todas as feras
antes submersas.
BARBEARIA
nuvens
no céu alaranjado
pensamentos
escuros
a dúvida não esclarecida
sobre a eternidade
e os dias continuarão
estendidos
como tapetes sujos
nos corredores do velho casarão
mais uma vez
na cadeira do senhor Caetano
cortando o cabelo
pouco
que resta
na cabeça.
poema molhado
hoje era o dia
em que eu iria
tomar uma cerveja
na mercearia
fez água