Uma leitura desse domingo

Alguma das coisas que me passaram pelos olhos hoje.

MÁRIO DE ANDRADE DESCE AOS INFERNOS

I

Daqui a vinte anos farei teu poema
e te cantarei com tal suspiro
que as flores pasmarão, e as abelhas,
confundidas, esvairão seu mel.

Daqui a vinte anos: poderei

tanto esperar o preço da poesia?

É preciso tirar da boca urgente

o canto rápido, ziguezagueante, rouco,

feito da impureza do minuto

e de vozes em febre, que golpeiam

esta viola desatinada

no chão, no chão.

II 

No chão me deito à maneira dos desesperados.

Estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio,
esqueço que sou um poeta, que não estou sozinho,
preciso aceitar e compor, minhas medidas partiram-se,
mas preciso, preciso, preciso.

Rastejando, entre cacos, me aproximo.
Não quero, mas preciso tocar pele de homem,
avaliar o frio, ver a cor, ver o silêncio,
conhecer um novo amigo e nele me derramar.

Porque é outro amigo. A explosiva descoberta

ainda me atordoa. Estou cego e vejo. Arranco os olhos e

[vejo.
Furo as paredes e vejo. Através do mar sangüíneo vejo.
Minucioso, implacável, sereno, pulverizado,
é outro amigo. São outros dentes. Outro sorriso.
Outra palavra, que goteja.

III 

O meu amigo era tão
de tal modo extraordinário,
cabia numa só carta,
esperava-me na esquina,
e já um poste depois

ia descendo o Amazonas,
tinha coletes de música,
entre cantares de amigo
pairava na renda fina
dos Sete Saltos,
na serrania mineira,
no mangue, no seringal,
nos mais diversos brasis,
e para além dos brasis,
nas regiões inventadas,
países a que aspiramos,
fantásticos,

mas certos, inelutáveis,
terra de João invencível,
a rosa do povo aberta…

IV

A rosa do povo despetala-se,

ou ainda conserva o pudor da alva?

É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil,

[pranto infantil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.
Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista

[que incha,
e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,
o poeta, nas trevas, anunciou.

Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros,

quadros. Portinari aqui esteve, deixou

sua garra. Aqui Cézanne e Picasso,

os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão,

a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões,

os bichos… Aqui tudo se acumulou,

esta é a Rua Lopes Chaves, 546,

outrora 108. Para aqui muitas vezes voou

meu pensamento. Daqui vinha a palavra

esperada na dúvida e no cacto.

Aqui nunca pisei. Mas como o chão

sabe a forma dos pés e é liso e beija!

Todas as brisas da saudade balançam a casa,

empurram a casa,

navio de São Paulo no céu nacional

vai colhendo amigos de Minas e Rio Grande do Sul,

gente de Pernambuco e Pará, todos os apertos de mão,

todas as confidencias a casa recolhe,

embala, pastoreia.

Os que entram e os que saem se cruzam na imensidão

[dos corredores,
paz nas escadas,
calma nos vidros,
e ela viaja como um lento pássaro, uma notícia postal, uma

[nuvem pejada.
Casas ancoradas saúdam-na fraternas:
Vai, amiga!
Não te vás, amiga…

(Um homem se dá no Brasil mas conserva-se intato,
preso a uma casa e dócil a seus companheiros
esparsos.)

Súbito a barba deixou de crescer. Telegramas
irrompem. Telefones
retinem. Silêncio
em Lopes Chaves.

Agora percebo que estamos amputados e frios.

Não tenho voz de queixa pessoal, não sou

um homem destroçado vagueando na praia.

Muitos procuram São Paulo no ar e se concentram,

aura secreta na respiração da cidade.

É um retrato, somente um retrato,

algo nos jornais, na lembrança,

o dia estragado como uma fruta,

um véu baixando, um ríctus

o desejo de não conversar. É sobretudo uma pausa oca

e além de todo vinagre.

Mas tua sombra robusta desprende-se e avança.

Desce o rio, penetra os túneis seculares

onde o amigo marcou seus traços funerários,

desliza na água salobra, e ficam tuas palavras

(superamos a morte, e a palma triunfa)

tuas palavras carbúnculo e carinhosos diamantes.

 

(E também saudades dela que se foi, e de outras coisas que se foram…)