Cântico Negro

  
Um poema que me marcou bastante nalguns tempos da ida e saudosa, porém remanescente, adolescência (leia-se: nem faz tanto tempo assim).
     
A rebeldia nele impressa me incitava a alimentar a já indômita e clássica resistência à ordem e às regras própria da fase. Lembro-me de ficar recitando exaustivamente seus versos, em momentos de preparação para a transgressão, e de sentir o sangue correndo nas veias como se já a estivesse praticando. Eu pretendia utilizá-lo num grande momento, tipo em alguma reunião familiar (estas sempre me pareciam com o momento propício para tal, por serem, as minhas, geralmente compostas por figuras ilustres do cenário político local — criaturas, cuja lembrança, ainda hoje me causa um pouco de mal-estar), como forma a libertar os nós entalados na garganta ou somente para chamá-los para o fato de que eu estava ali, ou que, mesmo já estando, não necessariamente deveria ser como eles — o velho e típico grito dos adolescentes. Acho que nem preciso contar para vocês que esse plano falhou; nunca consegui dizer porra nenhuma pra eles, muito menos dessa forma tão especial e bravia. Como já mencionado antes — a valentia nunca foi o meu forte… 
    
Bem, lembrei disso, na verdade, porque ontem, num papo com o Ramiro (leia-se: o Chuchu), discutimos, em algum momento da noite, sobre as consequências da rebeldia dos adolescentes no destino da sexualidade da sociedade — uma velha discussão de bar e, também, um caso particular, mesmo assim fez emergir a lembrança da minha época de rebeldia.
 
Vou publicar isso aqui a fim de tentar produzir, mesmo que em menor escala, o tão sonhado efeito de ter recitado isso em alguma ceia de natal. (Vocês podem nem acreditar, mas, nesse momento, até que o sangue me esquentou as veias como em outrora — a valentia pode nem ser mesmo o meu forte, mas, já a rebeldia, essa parece, de fato, tomar conta de mim. Ah, como eu gosto disso!). 
 
Enfim, ei-lo:   
 
 
“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
 
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
   

     

José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista “Presença”, e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — “Poemas de Deus e do Diabo” (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.   

Fonte: http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp