Lars von Trier exorciza o Anticristo
Por: Knud Romer
A entrevista a seguir foi conduzida pelo ator Knud Romer, que participou de “Os Idiotas” de Lars von Trier em 1998. Ele conversou com o diretor em abril, quando von Trier acabava de dar os últimos retoques em “Anticristo”. O filme, que estreia no Brasil nesta sexta, 28 de agosto, rendeu a Palma de Ouro, no festival de Cannes, à atriz Charlotte Gainsbourg e passou a ser conhecido como o trabalho mais polêmico do diretor, aumentando ainda mais sua fama de cineasta ousado e sem medo de controvérsias.
“Você está parecendo um padre” von Trier disse quando nos cumprimentamos fora da sala de exibição no Filmbyen, onde eu veria seu último trabalho, “Anticristo”. “Bom, estou aqui para salvar sua alma imortal”, ironizei. 90 minutos depois eu saio do cinema profundamente abalado. Na volta para casa, o medo e a paranoia voltam com tudo quando um carro funerário passa por mim na estrada. E no dia seguinte teria que confrontar tudo isso de novo.
A tarefa de entrevistar von Trier é um pouco intimidante. Um mestre da ironia e do sarcasmo, ele consegue dominar qualquer conversa e transformar você e suas piores feridas no assunto principal. Na hora marcada para a entrevista, eu espero por ele no Filmbyen, mas a equipe me avisa que ele vai se atrasar. Acima das portas de seu escritório está escrito, em vermelho-sangue: “O caos reina”. Uma hora depois eles me avisam que von Trier quer fazer a entrevista em sua casa, vinte quilômetros ao norte dali. Estou tão nervoso que tenho medo de sair da estrada.
Aproximando da pequena estrada que leva à casa dele, ao olhar para um pequeno riacho, bato meu carro numa cerca e em algumas pedras no estacionamento de uma outra casa, antes de ouvir, finalmente, uma voz gritando de uma porta aberta: “Knud, aqui”!
Von Trier está graciosamente personificado. Sua esposa, Bente, fez waffles e chá de ervas – as duas coisas mais relaxantes do mundo. Eu aceito as duas coisas quando percebo que a entrevista vai ser no porão, em dois pufes, e que von Trier está vestindo apenas meias pretas, uma cueca preta folgada e uma camiseta preta.
De repente, já não sei mais o que vai acontecer – ainda mais porque eu pretendo discutir como, da mesma maneira que outros grandes diretores, ele continua fazendo sempre o mesmo filme, com variações diferentes e cada vez mais radicais. Claro que, no caso dele, isso é um filme sobre um cara passivo e paranoico, megalomaníaco, que está acamado (como em “Ondas do Destino”) ou enterrado vivo (como em “Anticristo”), que abusa sexualmente de uma mulher enferma, ou mentalmente doente, até a morte, com o intuito de produzir imagens de um desejo sado masoquista e satisfazer sexualmente sua condição de voyeur. Minha paranoia está fora de controle – francamente, tenho medo de ser a próxima vítima!
Eu não fui, claro. Não foi o Anticristo que eu encontrei lá no porão, mas o diretor, em seu estado mais simpático e aberto – ao ponto mesmo da quase nudez – que vive à beira do abismo, com uma consciência aguda da morte, para criar o rico visual apocalíptico que faz de o “Anticristo” uma obra-prima.
Uma hora e meia depois, eu me arrependo de não ser um entrevistador melhor. É minha primeira vez, na verdade, e falo demais. Na saída, faço algo que não se faz: abraço von Trier para demonstrar meu agradecimento. De volta ao carro, meu nervosismo e medo e minha paranoia desaparecem e dessa vez – é verdade, eu juro – ultrapasso um carro funerário no meu caminho de volta para casa.
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Knud Romer – Você fez vários filmes conceituais, nos quais se “escondeu”. Agora, von Trier, o produtor de imagens apocalípticas está de volta. Por que você fez a primeira coisa e por que está de volta?
Lars Von Trier – É tudo imagem para mim – mesmo que haja linhas feitas à giz no chão. Mas eu (hesita), eu estava me sentindo pra baixo, deprimido – eu cheguei ao fundo do poço – e duvidei que eu fosse capaz de fazer outro filme. Porém, retornei a alguns materiais da minha juventude. Eu era muito interessado em Strindberg [um dos maiores escritores escandinavos], especialmente na pessoa dele. Ele era incrível. Então tentei fazer um filme – nunca falei sobre isso antes e é difícil colocar em palavras – no qual eu tivesse que jogar a razão para longe por um momento.
“O caos reina”.
Sim (ri). Produzi várias imagens que tentei juntar. Também, foi muito interessante fazer um filme com apenas dois personagens.
“Cenas de um Casamento” [de Ingmar Bergman, 1973]…
Sim, “Cenas de um Casamento”, mas de uma maneira um pouco diferente. Eu gosto de “Cenas de um Casamento”. Acho um grande filme.
A visão da mulher no seu filme é provavelmente mais ligada a Strindberg do que a Bergman?
Sim, e é provável que eu seja questionado sobre isso novamente, minha visão da mulher. Sempre tive uma visão romântica acerca da batalha dos sexos, sobre a qual Strindberg escrevia sempre. Continuamos a descrever as relações entre os sexos. Não sei se uma verdade inequívoca existe.
Agora, você faz “filmes de gênero” – entre muitas aspas. “Ondas do Destino” é um melodrama e “Dançando no Escuro” um musical. “Anticristo” é um suspense ou até mesmo um terror. Qual a sua relação com os gêneros cinematográficos?
O gênero é uma inspiração. A minha história é praticamente a mesma sempre. Estou bem ciente disso agora. Mas “gêneros”… Acho que nunca seguirei um a risca, pois acredito que é necessário acrescentas algo a eles. Eu gosto quando as coisas ultrapassam as fronteiras.
Alguns poderiam dizer que você – com um espírito cada vez mais transgressor – se aproxima de um dos gêneros mais tabus, a pornografia.
Bem, posso dizer que flertei com a pornografia, especialmente em “Os Idiotas”. De alguma forma, sexualidade e o gênero terror estão ligados. Mas pornografia? Não sei. É pornografia? Talvez. A pornografia sempre me incomodou e, ao mesmo tempo, eu realmente tento fazer com que meus filmes afetem as emoções do público. Não posso negar que minhas imagens são criadas com o objetivo de causar um efeito.
O filme me causou muito medo. Não lido bem com o medo, ele me assombra. Se eu tivesse que criar aquelas imagens na minha mente primeiro e depois ter que enfrentar suas expressões emocionais profundas, eu teria um ataque nervoso.
Um filme é um reflexo pálido da realidade. Se você está numa sala de cinema e chora, é uma pálida imitação de uma emoção similar que você teve na vida real. Dessa forma, um filme é sempre algo de segunda mão, uma emoção emprestada da vida real. Se alguém se assusta é porque, provavelmente, tem algum medo que pode ser extraído e usado durante uma experiência cinematográfica. Mas o cinema tem outras qualidades além de provocar emoções. “O Grito”, de Munch, por exemplo, que meu filho acabou de copiar num desenho, é uma expressão magnífica de uma emoção, mas as pessoas não saem correndo e gritando de dentro dos museus por causa do quadro.
Seus filmes são “gritos”?
Humm. “Anticristo” é o que mais se aproxima de um “grito”. Ele surgiu na minha vida em um momento em que eu me sentia muito mal. A inspiração pode ser encontrada em meu próprio medo, em minhas próprias emoções. É daí que surgem as coisas, mas a partir disso, elas se transformam em outros elementos. Não é como se acontecesse uma telepatia entre o diretor e o público. A razão pela qual o gênero terror – e eu nem estou certo de que o filme seja de terror – é interessante para mim, é porque eu gosto de fazer muitas coisas diferentes.
Para mim é um alívio ver você retornar a algo 100% romântico, simbólico e universal com reminiscências católicas, e todo esse papo – é quase pré-romântico, gótico de alguma forma, Conde Drácula.
Sim, é mesmo. Eu não consigo analisá-lo, mas visualmente, estamos no gênero romântico, sem dúvida.
Você diz que um filme não é uma cópia fiel de um pedaço da vida. A realidade de um filme de terror – uma experiência passiva e paranoica da realidade, aquela da megalomania, quando tudo gira em torno de você – indica um espectador passivo. É como medo do escuro: um estado passivo de paranoia que vemos sempre nos seus filmes, com o protagonista completamente paralisado, acamado, enterrado vivo!
(ri) Sim. Não esqueça, eu li Edgar Allan Poe. Ele mesmo era uma figura romântica.
É algo interessante os seus filmes expressarem medo do escuro, considerando que eles são feitos para a sala escura, onde o espectador está completamente vulnerável.
Uma vez pensei em fazer teatro porque achei que era possível ficar mais assustado no teatro do que no cinema. Eu estava planejando fazer uma versão de “O Exorcista” no teatro. Eu me sinto mal no cinema com facilidade, mas, no teatro, com mais facilidade ainda, porque é ao vivo. Ver uma peça é algo terrível para mim. Agora que estamos falando sobre públicos, parece que apenas uma parte muito pequena passa bem pela experiência.
De certa maneira o filme é uma terapia, mas o terapeuta no filme não tem muito o jeito de terapeuta não. Ele é praticamente um sádico, certo?
Eu tive algumas experiências com terapia cognitiva, que parece ser baseada na forma como terapeutas fazem você superar o medo de cair num abismo, por exemplo, e esse é o fim do medo. Aparentemente, é uma forma bem sucedida de terapia. Claro, depende da altura do abismo. Eles se saem muito bem com pequenos declives. Ah, eu gosto de brincar e provocar, essas coisas. Os meus protagonistas masculinos são basicamente idiotas, que não entendem nada. Em “Anticristo” também. Então, é claro que as coisas dão errado! O medo pode mudar o mundo? Eu acho que sim – ele pode.
Como o Catolicismo entrou na história? Filmes de terror antigos têm alho e crucifixo – assim como o Catolicismo. Parece haver muita bagagem católica nesse filme.
Certo. Mas eu não posso responder, porque sou um péssimo católico. Na verdade, eu nem sou religioso. Estou cada vez mais ateu.
Ainda assim, o Catolicismo é a religião favorita dos que não acreditam, porque possui muitas expressões: rituais, ornamentos e por aí vai. Isso nos leva de volta ao que conversamos sobre subverter e brincar com os gêneros cinematográficos. O Catolicismo também oferece essa possibilidade.
Sim, ele pode fascinar e atrair – pelo menos eu fui. Eu vejo muita liberdade nessa possibilidade. Para mim, o Protestantismo sempre foi a grande besta. Mas a religião em geral é uma droga. Isso eu sei bem. Eu deixo o livro do Nietzsche, “O Anticristo”, na meu criado-mudo desde os 12 anos de idade. É o grande estudo que desnuda o Cristianismo.
Engraçado você mencionar sua ideia de transformar “O Exorcista” em peça de teatro, porque o exorcismo é algo muito católico. Você está exorcizando seus próprios demônios ou demônios da vida real? A psicanálise não é uma forma de exorcismo também?
Mas esses demônios são meus amigos. Talvez seja essa a vantagem de fazer filmes: os demônios, que podem causar dor quando você os conhece, têm outros papéis. Eles se tornam seus amigos quando você os coloca em um filme. Eles se tornam parceiros, cúmplices. Talvez, Munch tenha se sentido muito bem com “O Grito”. Munch, em certo momento, veio para a Dinamarca ser curado por um Dr. Jacobsen, que tratou dois grandes artistas, Strindberg e Munch. Ambos ressurgiram totalmente transformados. Munch, definitivamente, para o pior. Munch era bem mais interessante antes de vir para a Dinamarca e passar pelo que passou. A coisa pode ir bem longe, mas pelo menos é interessante, se o que dizem for verdade: quando a loucura retrocede, a qualidade do trabalho também cai. Pode ser…
E vale o preço?
Nunca vale o preço! Eu não quero ser repetitivo, mas eu tenho me sentido muito mal!
Gostaria de conversar sobre seus atores. Como foi trabalhar com eles? Afinal você exigiu muito deles.
Trabalhei com Willem [Dafoe] antes, em “Manderlay”. Ele é um cara ótimo. Perguntou se eu tinha trabalho para ele, então escrevi dizendo que tinha esse filme, mas que minha esposa não achava que ele toparia. Acho que isso o provocou. Mas ele não tem constrangimento em mostrar seu corpo e eu nem acho que ele deveria ter. Entramos em contato com algumas atrizes que realmente não tinham coragem para o papel. Charlotte [Gainsbourg] se prontificou e leu o roteiro. Ela não teve dúvidas. Isso é a melhor coisa que pode acontecer: dois atores que estão de fato interessados em fazer o filme. E muito foi cobrado deles, então eles tinham que estar a fim. Os dois fizeram um ótimo trabalho! Nunca vi alguém trabalhar tão intensamente quanto Charlotte. O roteiro dela está cheio de notas que, ainda bem, ela não quis mostrar para ninguém. Muito, muito dedicada.
Há um certo pudor em relação aos órgãos genitais.
Eu prefiro pensar que tenho um público que aprecia quando as coisas são mostradas.
Você acredita que as crueldades nesse filme, a manifestação extremada, terão algum efeito sobre quem assistir ao filme – ou seja, interferir na recepção?
Não faço ideia. Eu quero que as pessoas vejam o filme, claro. Uma carreira é como uma série de perguntas para um certo grupo. Se eles acompanham toda a jornada, eles são “minha” gente. Mas, acima de tudo, eu quero que o filme encontre seu público.
Nicole Kidman chegou a perguntar em algum momento porque “você é tão mau com as mulheres”? Acima de qualquer coisa, Strindberg era conhecido por sua misoginia. Eu sei que você não detesta as mulheres. Mas você não tem medo de ser cobrado ao levar a misoginia ao extremo? A sexualidade feminina como o mal. Como a serpente no Paraíso, que merece ser punida. Isso é tudo uma brincadeira romântica?
Acabei de ver um documentário sobre caça às bruxas. Diga o que quiser, mas essa história é incrível. É um material excelente. Eu não acredito em bruxas. Não acredito que mulheres ou sua sexualidade sejam o mal, mas é assustador. É importante ter liberdade quando está fazendo um filme. Minha mãe era uma defensora ferrenha dos direitos da mulher. Não acho que mulheres devam ser subjugadas, ainda mais com violência. É claro que sou contra isso. A caça às bruxas era algo realmente horrível. Mas a imagem da bruxa tem tantos pontos de fascínio que – porque eu deixei esse filme surgir para mim, ao invés de pensá-lo – o que acabou indo parar no filme tende ao exagero. Porém, me chamar de misógino é equivocado.
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